16 nov 2022 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Igualdade de Género, Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2022 "Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global em Tempos de Mudança" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Por: Alexandra Silva - Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres(PPDM); Eliana Madeira – Graal; La Salete Coelho – Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo (ESSE – IPVC);Teresa Alvarez – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG)
Estamos longe da realização do ideal proclamado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de sermos “livres e iguais em dignidade e direitos”. Essa distância é claramente visível quando falamos das mulheres e dos homens porque as desigualdades, entre umas e outros, e as múltiplas formas de discriminação e de violência, que afetam desproporcional e desfavoravelmente as mulheres e as raparigas, estão presentes em todas as sociedades do mundo.
Esta é uma área onde os progressos, inquestionáveis ainda que insuficientes e fragmentados, não são inevitáveis nem irreversíveis, como reconheceu a Comissão Europeia em 2020, bastando que se verifiquem alterações nas composições parlamentares ou governativas, ou mesmo uma crise social e económica, para que direitos conquistados sejam anulados. São vários os exemplos próximos e recentes, desde países europeus como a Hungria ou a Polónia, a países como o Afeganistão ou o Irão. A ascensão ao poder de minorias com poder económico capazes de amplificar na opinião pública discursos e práticas conservadoras, baseadas em tradições seculares segregadoras e discriminatórias, demonstra a facilidade do retrocesso da realização dos direitos humanos, em particular das mulheres e raparigas. A estas tem-lhes cabido um lugar secundário e as funções “complementares” na sociedade.
Os números continuam a espelhar as desigualdades na esfera pública e privada, sendo preocupantes as diferenças que se verificam nos indicadores relativos à participação das mulheres e dos homens nos lugares de decisão económica e política, aos usos do tempo, aos recursos a que acedem, à violência contra as mulheres no espaço público e na esfera privada…
Apesar de todas as mudanças, resiste, mesmo que implícita, a convicção na superioridade masculina e ideia de que aos homens cabe, sobretudo, a produção e a representação e às mulheres a reprodução e o cuidado.
As desigualdades entre mulheres e homens, raparigas e rapazes, exigem uma reflexão contínua, profunda e consequente e uma ação transformadora
Estas crenças, resistentes à mudança, estão na raiz das desigualdades sociais que, como fazemos notar, num outro texto que escrevemos em conjunto, “advêm de dois factores que, sendo distintos, são intrinsecamente interdependentes: as representações socioculturais dominantes sobre o que são os homens e as mulheres e que, ao nível do quotidiano, funcionam sob a forma de estereótipos (...) as relações de poder de cariz patriarcal que assentam na ideia de uma hierarquia entre homens e mulheres geradora de uma desigual valorização social dos indivíduos em função do seu sexo, que se expressa na ‘naturalização’ da superioridade masculina e da inferioridade feminina e nas subsequentes relações de domínio/subordinação.” (Silva et al., 2022).
É, ainda e sempre, necessário (re)afirmar e reconhecer o igual valor das mulheres e dos homens para o bem-estar e para o desenvolvimento harmonioso e sustentável das sociedades e do planeta. Esse reconhecimento passa pela efetivação da igualdade de direitos e deveres, oportunidades e resultados.
a ED/ECG constitui-se como um contexto privilegiado para (...) a problematização da situação de subordinação e desvantagem das mulheres e das raparigas no mundo
As desigualdades entre mulheres e homens, raparigas e rapazes, exigem uma reflexão contínua, profunda e consequente e uma ação transformadora. Numa linguagem Freiriana, exige que superemos a consciência “ingénua” e formemos “consciência crítica". É essa consciência crítica a base da ED/ECG, que, ao integrar de forma sistemática as questões pertinentes à igualdade, alavanca também a construção da consciência de pertença a um coletivo sexual - de homens e de mulheres - baseada em normas sociais dominantes, consensuais, mantidas e reconstruídas.
Nessa perspetiva, a ED/ECG constitui-se como um contexto privilegiado para: i) a problematização da situação de subordinação e desvantagem das mulheres e das raparigas no mundo; ii) o questionamento e desocultação das causas estruturais que dão forma e reproduzem essas desigualdades; iii) o reconhecimento e inconformidade com as consequências das desigualdades que afetam particularmente as mulheres e as raparigas, mas também os homens e os rapazes que são muitas vezes pressionados a corresponder a expectativas que os afastam das suas vocações, interesses e emoções e os colocam em risco; iv) a imaginação e adoção de mudanças que contribuam para uma distribuição mais equilibrada do poder, dos recursos, dos tempos e do reconhecimento entre mulheres e homens.
O grande potencial da ED/ECG está no contributo que esta pode dar para a transformação das realidades injustas, discriminatórias e violentas. Educar crianças e jovens, cidadãs e cidadãos, a serem socialmente conscientes e politicamente críticas/os é parte significativa do caminho para a vivência em sociedades livres assentes na partilha e no cuidado do bem comum. Porém, as desigualdades em razão do sexo têm sido insuficientemente trabalhadas e visibilizadas, sendo, por assim dizer, “um pouco marginais, apenas abordadas pontual e superficialmente” (Silva et al., 2022). Ora, uma sociedade livre e justa exige o reconhecimento formal e a consideração de mais de metade da sua população, a começar no campo educativo.
A ED/ECG poderá dar um contributo para que mulheres e homens, rapazes e raparigas, sejam capazes de olhar e ver não apenas o próximo e o conhecido, mas também o distante e o desconhecido, ampliando o sentido de pertença a uma mesma humanidade
É, assim, essencial incorporar a Igualdade entre mulheres e homens como princípio das ações da ED/ECG para que, em cada ação e iniciativa de ED, sejamos capazes de “desneutralizar” o olhar, ampliar a nossa consciência às diferenças e injustiças que derivam, ainda, do facto de se ser homem ou mulher nas nossas sociedades.
A ED/ECG poderá dar um contributo para que mulheres e homens, rapazes e raparigas, sejam capazes de olhar e ver não apenas o próximo e o conhecido, mas também o distante e o desconhecido, ampliando o sentido de pertença a uma mesma humanidade e desenvolvendo uma atitude de questionamento crítico, e comprometido, das profundas desigualdades entre mulheres e homens no contexto daquelas que existem e se mantêm entre regiões, países e grupos sociais.
Educar para a transformação social implica educar para a igualdade entre raparigas e rapazes, mulheres e homens. Esta é a interseção fundamental que temos por fazer.
Nota:
Silva, A., Madeira, E., Coelho, L.S., Moura, M. e Alvarez, T. (2022). Interseções: Igualdade entre Mulheres e Homens e a Educação para o Desenvolvimento. Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Disponível aqui.

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2022 "Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global em Tempos de Mudança". Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.